Território de incontáveis comunidades tradicionais, o bioma brasileiro guarda conhecimentos milenares, de cura, acolhimento e cuidado pelas mãos de mulheres que conservam a terra, as águas e as narrativas sagradas
“Tudo o que a gente vai fazer, a gente pede licença”. É assim que a quilombola Lucely Piom neta de benzedeira, parteira e raizeira, começa seu relato a respeito das energias cerradeiras que nos fortalecem todos os dias, a toda hora. Como geoterapeuta, fitoterapeuta e terapeuta holística, ela expressa em cada palavra a força das raízes profundas do Cerrado e do quanto o bioma é rico, nos alimenta e nos cura ao mesmo tempo. Como guardiã de plantas medicinais e divulgadora de uma ciência mais antiga do que o próprio Brasil, a quilombola da comunidade do Cedro, em Mineiros (Goiás) é referência internacional na missão de conservar o Cerrado para continuar a vida com saúde, especialmente para as mulheres.
Desde os cinco anos, quando percorria a região com sua avó Maria Bárbara, Lucely aprende a propriedade de cada ser curativo. Na promoção do diálogo entre conhecimento científico e tradicional, ministrou diversos cursos na Universidade de Brasília (UnB) e no Hospital de Medicina Alternativa em Goiânia (GO), e atualmente é professora no Projeto Encontro de Saberes na UnB, dando aula sobre saúde, cura, espiritualidade, saberes quilombolas e meio ambiente.
Desmatar o Cerrado significa queimar as farmácias naturais e as redes de cuidado entre as mulheres, jogar contra a vida, contra a saúde que vem da terra e das águas, minar o potencial de cura com que o bioma nos presenteia. É desprezar o presente forjado há milhares de anos. “A gente, que é mulher, tem mais o cuidado, porque carregamos a herança de cuidar do outro, ajudar o outro, zelar pela saúde do outro. Então, quando a gente fala da cura, do Cerrado, da natureza, traz para nós, mulheres, esse momento de trabalhar nessa preservação, porque dali a gente tira nossos remédios, nossos alimentos”.
A batalha pela sobrevivência do Cerrado é penosa e precisa ser constante. Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) estimam que 7.340 km² do bioma se foram entre agosto de 2019 e julho de 2020, aumento de 13% em relação à devastação no ano de 2019. “O Cerrado é um dos maiores biomas da América Latina, e tem conexão com a Mata Atlântica, a Amazônia, o Pantanal e a Caatinga. O Pantanal, por exemplo, depende bastante das águas que vêm do Cerrado e o Rio São Francisco tem mais de 75% do seu fluxo dependendo desse bioma”, calcula Isabel Figueiredo, coordenadora do programa Cerrado e Caatinga do Instituto Sociedade População e Natureza (ISPN).”No nosso país a geração de energia hidráulica é a maior fonte de energia, então, a água do Cerrado também é importante para isso. Além disso, o Cerrado é importante para a regulação climática, das chuvas, da temperatura, da umidade que vem da Amazônia para o Sudeste. Tudo passa pelo Cerrado”.
É preciso respeitar o sagrado da terra
Cada planta tem uma energia distinta e atua em um órgão diferente. Mestra Lucely nos conta isso ao denunciar o quanto a destruição do Cerrado compromete todo um tratamento, que tem um ritual para se efetivar, com os ingredientes certos. Com o agronegócio, a morte das plantas inviabiliza a saúde dos povos não só do campo, mas também os da cidade – afinal a indústria farmacêutica também se utiliza da natureza.
Em sua clínica, a professora realiza procedimentos e orientações em atendimentos personalizados. Nesses tempos de pandemia, as terapias mais requisitadas são para ansiedade, depressão e estresse. Ela adota métodos como o Reiki (técnica de imposição de mãos e canalização de energias), realinhamento dos chacras, banho de argila, cromoterapia, e usa plantas medicinais em vários tratamentos.
Com 70% da mata nativa conservada em seu quilombo, a mestra se preocupa ao ver a lavoura de cana-de-açúcar apontar nos arredores, uma ameaça às espécies da região. “Tudo tem dono: a mata, a água, as plantas, as pedras. Então, o que a gente faz é respeitar e, muito, cada um desses donos, porque a mãe natureza divide cada espaço dela sob o controle de um dono”, ensina, sobre a reverência ao sagrado da natureza e a fé no ato de promover saúde.
Lucely também é uma das autoras do livro “Farmacopeia Popular do Cerrado”, que reúne 262 raizeiras e raizeiros desfilando conhecimentos tradicionais sobre a biodiversidade local. A quilombola está entre as fundadoras da Articulação Pacari, rede que dissemina formação comunitária para manter o Cerrado vivo. Ela promove ainda a capacitação de mulheres em áreas como saúde, responsabilidade social, autoestima e empoderamento, tanto na geração de renda como na medicina preventiva.
“O povo do Cerrado, sem Cerrado e sem mata, não existe”
O Centro de Plantas da comunidade quilombola do Cedro foi fundado na cozinha de mestra Lucely em 1985, e hoje ostenta mais de 400 espécies de plantas e frutas medicinais do Cerrado. O centro é um laboratório para as crianças aprenderem sobre plantar, colher e usar os vegetais, além de visitarem a mata, que se torna a grande sala de aula. “Na verdade, é algo que se ensina no cotidiano familiar dos quilombolas”, acrescenta. “Aqui, criamos uma forma de aperfeiçoamento para disseminar o saber”.
Lucely amplia a ideia de plantas medicinais e diz que é possível encontrar saúde nos hábitos alimentares do dia a dia. “Tanto fruta quanto um tempero com ervas, você não precisa beber o remédio, porque ele está na alimentação. Tomar o chá de uma fruta, fazer um suco, a mesma coisa. Então, é saber que tipo de vitamina, proteína e sais minerais precisa e buscar nas frutas, nas verduras e nas raízes. Inclusive as oficinas que a gente ministra são de plantas medicinais e alimentação enriquecida com frutos e folhas do Cerrado”, ressalta sobre a importância da boa alimentação para o fortalecimento do corpo.
O Cerrado nos ensina que a vida sempre vai ser maior e acima de qualquer evento e circunstância. Mesmo depois de uma queimada um, dois dias, alguns dias a gente já percebe a vida brotando novamente na sua grandeza e delicadeza
Com o sonho de conquistar espaço específico para cursos, terapias e atendimento a mulheres, jovens e crianças, ela prega que é preciso manter o Cerrado em pé no futuro. “Temos a obrigação de deixar o nosso Cerrado melhor do que a gente encontrou. Para que a próxima geração também possa conhecer e usar como nós estamos tendo esse privilégio”.
Isabel Figueiredo, do ISPN, atesta que as mulheres são as primeiras a sofrer quando um ambiente é alterado. “São o lado mais frágil, geralmente, do ponto de vista social”, completa. “Então, o que está acontecendo hoje de várias comunidades tradicionais estarem sendo expulsas de seus territórios ocupados por monoculturas, muitas vezes os maridos vão trabalhar em outras regiões e deixam as mulheres sozinhas com as crianças. As mulheres são esse lado que segura as famílias e, portanto, são bastante impactadas pela expropriação dos territórios”.
Fátima Cabral, agricultora, produtora de água, enfatiza a importância de se valorizar as mulheres que cuidam, coletam e se utilizam da riqueza do bioma. Presidente da Associação dos Produtores Agroecológicos do Alto São Bartolomeu (Aprospera), núcleo rural Pipiripau, ela defende a preservação do patrimônio material e imaterial, de seus conhecimentos e do fortalecimento das identidades dos povos.
“Essa relação das mulheres com o Cerrado transpassa o lugar da maternidade, do cuidado, do zelo, da preservação, do aproveitamento respeitoso, da coleta de sementes e coleta de frutos, de uma forma cuidadosa”, traduz. “É da natureza da mulher ser cuidadosa e forte mas com delicadeza. Então, é a mesma relação que nós observamos na conservação, de usar os recursos que são oferecidos pelo Cerrado com consciência. E a sociedade tem muito a aprender com essa relação respeitosa, com essa relação do reconhecimento do valor, do sabor, mas sem destruir, sem exterminar, sem acabar com a vida. É ter esse olhar mais profundo do que a natureza representa na nossa vida”.
Nascida no Rio Grande do Sul, Fátima foi para o Distrito Federal com 1 ano de idade. Hoje com 61, mesma idade da capital Brasília, trabalha com o sistema de Comunidades que Sustentam a Agricultura (CSA) no Distrito Federal, e desfila orgulho por viver e ser acolhida pelo Cerrado.
“O Cerrado nos ensina que a vida sempre vai ser maior e acima de qualquer evento e circunstância. Mesmo depois de uma queimada um, dois dias, alguns dias a gente já percebe a vida brotando novamente na sua grandeza e delicadeza”, reverencia, falando da lição que aprendeu ali. Resiliência para atravessar todas as adversidades, porque temos uma missão a cumprir. Assim, como o Cerrado tem essa missão valorosa de ser aqui, nesse território, a caixa d’água do país, onde estão as três das maiores bacias. Então, há que ser forte, há que se formar uma rede forte, pela continuidade das comunidades tradicionais”.
A agricultora se entende herdeira dos saberes daquele território. “Ter encontrado aqui minhas raízes, minhas forças e aqui ter iniciado minha família, tudo isso tem valor muito grande”, agradece, que teve todos os filhos no Cerrado – e também por isso é grata.
Cientistas mulheres e as plantas que curam
São muitas as lutas do grupo de mulheres negras Dandaras no Cerrado: conhecer a própria história, acionar o autocuidado, se fortalecer no coletivo, incentivar o surgimento de lideranças, valorizar o estudo e reivindicar políticas de saúde específicas à população negra. Inspiradas na líder do primeiro Estado livre das Américas, o Quilombo dos Palmares, a organização se articula há quase 20 anos no amparo às mulheres do bioma. Atualmente o empenho também contempla a instalação da Farmácia Popular Doméstica, junto ao Laboratório de Pesquisas em Educação Química e Inclusão (LPEQI) da Universidade Federal de Goiás (UFG). Por meio de oficinas online, as alunas são motivadas a observar as plantas de suas próprias casas e para conseguir remédios com materiais alternativos e de baixo custo.
Aqui é como a vida, tem altos e baixos, as coisas tortas, mas a beleza é exuberante. Assim também é a vida das mulheres: por mais sofrimento que seja, quando você se desponta, você se empodera, ninguém segura. Pode vir fogo, você renasce, vira a fênix do Cerrado, se reinventa. O projeto ainda testa saberes populares e promove a ampliação do conhecimento, a partir de procedimentos químicos em laboratório sobre plantas medicinais. E como resultado final, planeja a construção de uma pequena farmácia com plantas do Cerrado.
Mulheres em contexto urbano já selecionaram 168 plantas para aviamento de receitas. São tecnologias ancestrais que ganham vitalidade na criatividade científica e laboratorial, em que os saberes da academia e o tradicional se encontram para expressar a riqueza de caminhos. “Todos somos cientistas quando aprendemos, partilhamos e transmitimos o conhecimento. Por exemplo, você pega uma planta, vai estudar o quê? As proteínas, o que essa planta pode, o que não pode, o que faz bem e o que não faz bem, como tirar a coisa que faz mal, como eliminar a toxicidade. Então, é fazer ciência, descobrir caminhos”, descreve Marta Cezária, fundadora e coordenadora do Dandaras no Cerrado, mestranda no Programa de Educação e Ciência Matemática da UFG, com pesquisa focada nas mulheres.
A cientista, liderança feminista negra em Goiás, faz questão de enfatizar que os avanços sociais e científicos são conquistas conjuntas. “Ninguém faz ciência sozinho, é tudo coletivo”, atesta, em pensamento que se comprova até na produção em tempo recorde de vacinas contra a covid-19. Com a experiência junto às mulheres negras no combate às muitas violências que as espreitam, Marta batiza o processo de busca por saúde, física, espiritual e coletiva de afroternidade. “Para nós, mulheres negras, é esse estar uma com a outra, por exemplo, essa vivência do terreiro, essa vivência do grupo, do aconchego quando encontramos outras como nós, e suas famílias”.
“As pessoas às vezes só traduzem isso como aconchego, a gente vai mais longe. Afroternidade é acolher e se sentir acolhida. É uma forma de lidarmos com nossos problemas, alegrias, tristezas, sofrimentos, descobertas. É esse cuidado entre mulheres negras”, explica, sobre a importância do grupo e do autocuidado da saúde embutido na construção da Farmácia Popular.
A cientista, que tem longo caminho na defesa dos direitos das mulheres, formou muita gente nas comunidades tradicionais de Goiás, na defesa do Cerrado em pé, e na valorização do conhecimento de cada povo. “Uma planta muito utilizada no Cerrado é o algodãozinho, porque funciona em muitas infecções, mas precisa administrar do jeito certo. São dois tipos de algodãozinho, tem que conhecer para não correr risco”, ensina. “Tem o ipê roxo também, do qual se usa a entrecasca e não pode cortar de qualquer jeito, porque a árvore tem que continuar sobrevivendo. Você tira um pedaço para fazer o remédio, mas cuida da árvore, para ela cicatrizar e continuar”, acrescenta, sobre a técnica que se baseia no respeito à natureza.
Marta Cezária compara as mulheres do Cerrado com as flores do bioma, que mesmo em solo arenoso se abrem a novas possibilidades, à vida. “Conheci o mar, conheci outros países, mas não trocaria o Cerrado por nada. Aqui é como a vida, tem altos e baixos, as coisas tortas, mas a beleza é exuberante. Assim também é a vida das mulheres, por mais sofrimento que seja, quando você se desponta você se empodera, ninguém segura, pode vir fogo, você renasce, vira a fênix do Cerrado, se reinventa”.
Imagem em destaque: Ludmila Almeida
Texto publicado originalmente no Projeto Colabora.